No meu copo, na minha mesa 124 - Montevalle Reserva 2002; Casa de Santar 2003; Murganheira Branco Seco 2006; Restaurante A Petisqueira do Gould (Paço d'Arcos)



Continuando nos arredores da capital, aproveitámos uma folga para dar um saltinho a Paço d’Arcos. Indo pela Avenida Marginal em direcção a Cascais, sai-se na primeira saída para Paço d’Arcos, desembocando-se logo na Rua Costa Pinto, onde o nº 47 aloja o restaurante Os Arcos e alguns metros à frente, no nº 93, se encontra a Petisqueira do Gould. Na mesma zona, quase em frente, há a Casa Gallega e ainda um restaurante italiano e, num patamar mais abaixo, a Marítima e um restaurante asiático. Há muito por onde escolher.

Depois de espreitarmos à montra d’Os Arcos e da Petisqueira do Gould, ali a 100 metros um do outro, optámos por este último, ficando Os Arcos para próxima oportunidade. Franqueada a porta, encontrámos um espaço reduzido, quase intimista (a sala dispõe apenas de 30 lugares), onde somos conduzidos à mesa pelo anfitrião, o Sr. Amando Carvalho, dono daquele espaço.

Como entretém-de-boca apareceram na mesa umas tirinhas de presunto, pão de alho torrado e um creme à base de sapateira servido na própria concha.

Quando passamos à escolha dos pratos, a oferta, não sendo excessivamente extensa, é bastante variada, o que dificulta a escolha. Nos pratos do dia há arroz de garoupa com gambas, costeletinhas de borrego e posta mirandesa, entre outros. Como somos mais carnívoros, olhámos mais para o lado das carnes e chamou-nos a atenção a alheira de caça, o entrecôte grelhado e o tornedó, e ficámos ali a matutar no que escolher. Perante a nossa indecisão, o dono aproxima-se e sugere-nos a posta mirandesa, de carne certificada. Para fazer parelha acabámos por escolher o tornedó à portuguesa, frito em azeite e alho.

Os pratos foram apresentados num carrinho de servir e pedimos para dividir as doses em partes iguais, de modo partilhar os dois pratos. O dono acabou por servir-nos primeiro a posta mirandesa e guardou o tornedó na estufa. Obviamente, ambos mal passados.

A posta estava muito tenra, salpicada por um tempero original, em que se notaram algumas notas de canela e de ervas não identificadas pelos mastigantes. Quanto ao tornedó, extremamente suculento e tenro, de carne de Lafões, sobressaiu precisamente pela simplicidade da confecção, que permitiu que a qualidade da carne se exibisse sem peias.

E quanto ao vinho? A decisão tinha sido esta: almoçar num restaurante desconhecido e beber um vinho desconhecido. A carta era extensa, principalmente no Douro e ainda mais no Alentejo. Estávamos de olho num Gouvyas quando o dono nos sugeriu um Montevalle Reserva 2002, da empresa Bago de Touriga, de Luís Soares Duarte e João Roseira. Trata-se de um vinho feito com uvas de vinhas velhas cultivadas em Soutelo, no Cima Corgo, e São João de Lobrigos, no Baixo Corgo. Fermentado 100% em lagar e engarrafado após 24 meses de estágio em barricas usadas, é um vinho de produção limitada, que não é habitual ver no circuito comercial. Em conversa connosco ao longo da refeição, o dono disse-nos que tinha encomendado 80 caixas mas que só lhe vão chegando a pouco e pouco.

O vinho foi servido inicialmente num copo de prova, sendo o resto decantado sem que fosse necessário pedi-lo. Pedimos, sim, um frappé porque o vinho se apresentou com a temperatura um pouco elevada. Após uns 10 minutos com o decanter dentro do balde com gelo, o vinho ficou à temperatura adequada, podendo então ser devidamente apreciado, para o que foram oportunamente apresentados copos em forma de tulipa.

Fugindo um pouco ao habitual, este vinho não contém a quase omnipresente Touriga Nacional, ficando-se pelas habituais Touriga Franca, Tinta Roriz e Tinta Barroca. Apresenta uma cor com tonalidades violáceas, aroma frutado e a denotar alguma juventude. Na boca é medianamente encorpado e equilibrado, com uma acidez moderada e grau alcoólico não excessivo. Apesar dos 24 meses de estágio, a madeira não se sobrepõe no conjunto, deixando um fim de boca suave e fresco com um toque apimentado. Como a garrafa se esgotou, ainda tivemos que recorrer a meia garrafa do que houvesse disponível, e a escolha recaiu num Casa de Santar 2003, que se mostrou bem à altura do desafio. Há cerca de um ano tínhamos provado uma garrafa desta colheita, e devemos dizer que esta meia garrafa nos surpreendeu favoravelmente. Muito equilibrado, muito macio mas suficientemente encorpado e persistente para não ficar perdido nas sobras do vinho anterior.

Pelo meio, foram chegando mais uns reforços de pão torrado, batatas fritas às rodelas muito finas e os copos sempre preenchidos graças à extrema atenção do anfitrião, com quem fomos trocando algumas impressões acerca de outros vinhos, da origem das carnes e de outras sugestões que nos foi apresentando. Para finalizar, pedimos um delicioso e muito macio bolo de chocolate com gelado de nata, que rematou o repasto da melhor forma.

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A grande surpresa aconteceu apenas três dias depois. Há coisas que não se preparam antecipadamente, simplesmente acontecem porque calha. Encontrámo-nos nesse fim-de-semana a propósito dum evento cultural ali para os lados de São Domingos de Rana e, já cerca das 21 horas, com os estômagos meio vazios depois de termos enganado a fome com uns croquetes e rissóis, resolvemos ir petiscar qualquer coisa para fechar a noite. Tinha-se pensado num belo bife, mas dado o adiantado da hora achámos melhor ficar por uma coisa mais leve, pensando-se então no peixe. Como já dissemos, não somos grandes piscícolas, pelo que não é fácil escolher o que comer. A hipótese de ir para o peixe grelhado, sugerida pelo tuguinho, foi desde logo liminarmente rejeitada. Queria-se peixe, sim, mas qualquer coisa que soubesse bem. Estando ali pela zona, acabámos por voltar ao local do crime, e fomos outra vez parar a Paço d’Arcos. Toca a fazer a mesma volta do outro dia, e na montra d’Os Arcos os preços do peixe eram algo assustadores. Com alguma renitência do tuguinho, fomos outra vez bater à porta da Petisqueira!

Fomos outra vez magnificamente atendidos, voltando a trocar alguns dedos de conversa com o Sr. Amando Carvalho, aproveitando o facto de termos ficado noutro ponto da sala onde pontificam alguns recortes de jornais para nos inteirarmos da origem daquele espaço. Ficámos a saber que a Petisqueira surgiu depois da ourivesaria que a antecedeu ter sido assaltada e os proprietários despojados dos seus pertences. Para refazerem o negócio montaram um restaurante com um desenho interior que mereceu um prémio da Câmara Municipal de Oeiras.

Quase com as 10 horas da noite a bater, olhámos então, desta vez, para os peixes, e optámos pelos filetes de peixe-galo com arroz mariscado. Estavam soberbos, muito saborosos, assim como o arroz, malandrinho como convém. Desta vez rejeitámos as entradas e ficámos suficientemente preenchidos sem exagerar, que era o que se pretendia.

Para terminar, repetimos a sobremesa. Não havia opção que nos agradasse mais. Quanto ao vinho, voltámos a seguir a sugestão do Sr. Amando e escolhemos o Murganheira Branco Seco. Confirmou tudo o que se esperava: um vinho de grande elegância, com grande frescura na boca devido a uma acidez correcta e um grau alcoólico adequado (12%), que aumenta o prazer de beber sem nos pesar nem se tornar enjoativo, como muitos brancos fermentados em madeira e cheios de álcool que temos encontrado ultimamente. Este, sim, é mais ao nosso gosto. Frutado quanto baste, com alguma predominância floral que é proporcionada pela Malvasia Fina, uma casta que temos encontrado em brancos muito elegantes.

Quanto ao preço, tratando-se de duas refeições muito diferentes, o dispêndio também acabou por sê-lo. Na primeira pagámos 45 € por cada refeição, com uma garrafa de vinho a 26 € e ainda mais meia, enquanto na segunda, sem entradas, com apenas uma garrafa de vinho a 10 € e sem cafés, ficámo-nos por uns singelos 20 € por cabeça. Donde se conclui facilmente que é precisamente nas entradas e nos vinhos, mais que nos pratos, que se estabelece a diferença de preços. Mas não custa pagar o que pagámos da primeira vez quando se sai dum restaurante com o nível de satisfação que este nos proporcionou.

Perante este serviço de pratos e de vinhos irrepreensível, a qualidade da confecção e a atenção, afabilidade e simpatia do dono, só podemos considerar este restaurante como excelente. No final de duas visitas, prometemos voltar, não com três dias de intervalo, mas este local tornou-se visita obrigatória para nós. Não é preciso grandes poses para se atingir a excelência - apenas simpatia, competência e qualidade.

tuguinho e Kroniketas, os diletantes preguiçosos

Vinho: Montevalle Reserva 2002 (T)
Região: Douro
Produtor: Bago de Touriga Vinhos Lda.
Grau alcoólico: 13,5%
Castas: Touriga Franca, Tinta Roriz, Tinta Barroca
Preço no restaurante: 26 €
Nota (0 a 10): 7,5

Vinho: Casa de Santar 2003 (T) (garrafa de 375 ml)
Nota (0 a 10): 7

Vinho: Murganheira Branco Seco 2006 (B)
Região: Távora-Varosa
Produtor: Sociedade Agrícola e Comercial do Varosa
Grau alcoólico: 12%
Castas: Malvasia Fina, Cerceal, Gouveio Real
Preço no restaurante: 10 €
Nota (0 a 10): 8

Restaurante: A Petisqueira do Gould
Rua Costa Pinto, 93
2770-213 Paço de Arcos
Tel: 21.443.33.76
Preço médio por refeição: 35 €
Nota (0 a 5): 5

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